16º Domingo do Tempo Comum – (Lc 10,38-42): Acolher com o coração para servir melhor

O episódio do evangelho de hoje não apresenta duas atitudes antagônicas (Maria que escuta e Marta que serve) como se uma fosse boa e a outra ruim. As próprias palavras conclusivas de Jesus não permitem interpretar os dois modos de reagir numa relação de oposição ou competição, mas Jesus evidencia a relação intrínseca entre as duas irmãs, contudo numa perspectiva superlativa de superioridade: “Maria escolheu a melhor parte” (grego: tem agathen merida ekseleksato). O fato de Marta se ocupar das atividades da casa, quem sabe preparando inclusive a refeição para Jesus e os seus discípulos, não constitui em si uma coisa má, porém o momento da escolha para ocupar-se foi equivocado. Entre as várias demandas e escolhas na nossa vida há sempre uma hierarquia de valores que precisa ser considerada para não provocarmos desencontros e perdas. Diante da realidade de nossas limitações, priorizar é o caminho para alcançar sempre o melhor; sacrifica-se um bem menor para atingir um maior e melhor. Nessa tarefa desempenha uma missão primordial a Palavra de Deus, pois é luz no caminho.

Mesmo que se tenha falado dos dois modos de agir das irmãs como se fossem representações um da vida contemplativa e o outro da vida ativa, não nos parece que seja essa a maneira mais adequada de contemplar essa cena, pois  correríamos o risco de uma  comparação muito superficial e injusta em relação à perspectiva do evangelista, que muitas vezes constrói cenas em díptico para, numa aparente dialética, evidenciar a mensagem de salvação; na pedagogia do díptico lucano vemos sempre dois elementos que são colocados em relação; em princípio podem ser considerados separadamente, mas a finalidade é perceber que ambos estão intimamente ligados para favorecer ao leitor uma reflexão mais profunda sobre a realidade ou o tema implicitamente referidos (Zacarias-João e Maria-Jesus 1-2; paralítico e Levi; 5,17-28; as bem-aventuranças e as maldiçoes: 6,20-26; a hemorroísa e a filha de Jairo 8,40-56; Moisés e Elias na Transfiguração: 9,28-33; Jonas e Salomão: 11,29.31; os dois filhos: 15,11s; Lázaro e o rico: 16,19s; o fariseu e o publicano: 18,9s; as duas moedas da viúva: 21,1s; os dois anjos no sepulcro: 24,4; os dois discípulos de Emaús: 24,13).

A cena hodierna ilustra muito bem, a partir de uma realidade concreta, um dos temas fundamentais do evangelho de Lucas, isto é, Deus visita o seu povo (cf. 1,78; 7,16; 19,4) que tem como finalidade trazer a salvação. Contudo, a visita só se realiza se houver acolhimento. Alguém pode sair de casa no intuito de fazer uma visita, mas se encontrar a casa vazia ou não for convidado para entrar, a visita não acontece. Deus nos visita constantemente, vem ao nosso encontro, quer ser acolhido, porém se não lhe abrimos as portas do coração Ele não poderá entrar, evidentemente não desistirá: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3,20).

Condição fundamental para reconhecer a visita de Deus é ouvir a sua palavra: “Maria ficou sentada aos pés do Senhor, escutando-lhe a palavra”. A descrição da atitude de Maria indica que ela escuta o Senhor como discípula, isto é, senta-se aos pés do Mestre (por ex. Paulo formado aos pés de Gamaliel: At 22,3). Interessante recordar uma belíssima afirmação do Evangelho de S. João: “Jesus amava Marta, sua irmã e Lázaro” (11,5), eis porque a Tradição afirma que eles eram os amigos de Jesus. Porém, o verbo utilizado no grego é agapao (amor perfeito de quem dá a vida) e não fileo (amor de amigos). Portanto, a visita realizada por Jesus não é motivada por uma simples amizade, para rever amigos ou em vista de um refúgio para descansar das agruras do caminho como se fosse uma pausa na missão; pelo contrário, a visita é uma das expressões mais genuínas da sua missão: “O Espírito me ungiu e enviou…” (4,18). O ministro ordenado e o cristão leigo/a que têm experiência de realizar visitas missionárias compreendem bem melhor essa página do evangelho, e podem testemunhar tanto a beleza do acolhimento do evangelho como também a indiferença diante da presença de quem leva a Boa notícia da salvação. Urge reconhecer a importância de ir ao encontro das pessoas não apenas por motivação de parentesco ou amizade, mas como sinal da visita de Deus que socorre, escuta, se solidariza… Reduzir o acolhimento pastoral, ainda que bem feito (nem sempre) aos atendimentos burocráticos nas nossas secretárias paroquiais é empobrecer o anúncio de que Deus visita o seu povo; é privar as pessoas de uma experiência que pode transformar suas vidas.

A atitude de Maria aparece como exemplar; a reclamação de Marta soa como indelicada e reprovável. Contudo é a Palavra de Jesus que cria a ponte entre ambas: “Marta, Marta”, mais do que uma reprovação, essa palavra de Jesus manifesta que ela também é chamada a converter-se em discípula, sentando-se aos pés do Mestre para ouvi-lo. Personagens importantes do AT foram chamados por Deus ao ouvirem o próprio nome duas vezes (Abraão: Gn 22,1; Jacó: Gn 46,2; Moisés: Ex 3,4; Samuel: 1Sm 3,10); Marta está diante da grande oportunidade: O Senhor a chama, não simplesmente a corrige, mas lhe mostra o caminho para chegar até Ele, ou seja, a humildade para aprender com a irmã a melhor maneira de acolher aquele que lhe traz a salvação. Assim como descreveu a atitude de Maria (sentada aos pés do Mestre), Lucas também apresenta Marta: “Estava ocupada com muitos afazeres” (grego: periespato sobrecarregada, distraída, desviada); o aspecto sublinhado pelo verbo grego indica tanto uma situação pontual, momentânea, mas uma maneira de ser, isto é, andando para todo lado sem direção certa. Não lhe faltavam boa vontade e disposição para o serviço, mas ainda não encontrara a razão fundamental para isso. O Mestre não aprisiona seus discípulos aos seus pés para paralisá-los impedindo de servirem, mas aos seus pés, escutando a sua Palavra, os discípulos aprendem verdadeiramente a servir, pois Ele é o servo por excelência.

 
Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana