A perícope evangélica deste Domingo é introduzida pelo próprio evangelista com uma importante chave de leitura: “Jesus atravessava cidades e povoados, ensinando e prosseguindo seu caminho para Jerusalém”. Ao mesmo tempo que serve de retrospectiva da missão evangelizadora de Jesus por meio de ensinamentos e sinais (milagres, exorcismos etc.), reafirma o seu destino, cumprimento definitivo da sua missão na cruz e ressurreição, isto é, a sua entrega para a salvação da humanidade.
A pergunta: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?”, para além de ser uma importante questão discutida entre os doutores da Lei, coloca em evidência a nova compreensão de salvação revelada por Jesus, pois cada grupo, movimento, seita dentro do Judaísmo, tinha o seu modo próprio de conceber a salvação e de como alcançá-la, sobretudo como resultado de esforços humanos ou direitos adquiridos por privilégios e méritos, inclusive etnocentristas. Para muitos, a salvação era ápice de perfeição moral alcançada como prêmio para os autossuficientes; excluía-se quase que por completo a salvação como fruto da ação misericordiosa de Deus que não quer a morte do pecador, mas que se volte para Ele e viva (cf. Ez 33,11).
Uma leitura superficial desse trecho do evangelho poderia deixar uma impressão de contradição no ensinamento de Jesus; por um lado, afirma: “muitos tentarão entrar e não conseguirão”; contudo, conclui: “Virão homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus”. Para superarmos essa primeira impressão, é preciso ter presente o contexto dessas palavras evocado anteriormente: “Jesus atravessava ensinando…”. Uma das marcas essenciais do ensinamento de Jesus é conduzir as pessoas ao conhecimento das verdades fundamentais da vida, entre elas a necessidade de conversão em vista da vida em plenitude, por isso não se limita a dar respostas prontas, nem muito menos a alimentar especulações que infantilizam e acomodam as pessoas.
Com uma linguagem muito realista, o Mestre provoca seus interlocutores a tomar decisões claras e corajosas; o ensinamento de Jesus não nos transmite informações sobre alguns temas de relevância, como a salvação eterna, mas nos convida a acolher o evangelho e a seguir seus passos no: “caminho para Jerusalém”. Para além da curiosidade de quantidade, Jesus alerta para o desafio mais importante: “Esforçai-vos para entrar pela porta estreita”. O verbo grego (agonizesthi: de onde deriva a palavra agonia) indica mais do que um grande esforço pontual, mas implica uma luta permanente até o fim; portanto, uma atitude de vigilância operante pois o objetivo é claro: passar pela porta.
O simbolismo bíblico da porta está presente nos ensinamentos de Jesus em vários contextos (cf. Mt 6,6;7.13; 16,18; 24,33; 25,10; Mc 13,29; Jo 5,2; 10,1.9). Destacamos de modo pontual a relação simbólica da porta com o julgamento (cf. Jr 7,2; Pr 26,14); a porta de entrada (casa, cidade) está sempre no fim de um percurso, porém não se chegará lá se o caminho ou a direção não forem justos. Chegar e passar pela porta é sinal de que foi alcançado o objetivo. Para a vida cristã, o seguimento de Cristo é a entrada na eternidade feliz, é a realização plena de quem não desistiu do caminho e deixou-se guiar pelo Mestre, aderindo aos seus ensinamentos e abraçando também o seu destino.
O grito desesperado: “Senhor, abre-nos a porta” não é nada mais do que estratégia oportunista e vitimista de quem não fez o caminho, mas não conseguiu evitar encontrar-se com o fim, uma vez que o modo de caminhar rumo à eternidade se escolhe, mas o tempo de fazer a escolha cessa.
“Não sei de onde sois” (literalmente: “não vos conheço de onde sois”) a falta desse conhecimento implica ausência de intimidade-adesão e não tanto de proximidade externa: “Nós comemos e bebemos diante de ti, e tu ensinaste em nossas praças”. O contato físico com Jesus, como também um certo grau de parentesco, não dão direito de entrar no Reino, mas só a fé autêntica que se expressa no seguimento até o fim.
As palavras duras: “Afastai-vos de mim todos vós que praticais a injustiça!” não representam um julgamento arbitrário, mas uma declaração pública daquilo que sempre foram, isto é, afastados de Jesus pois não seguiam os seus ensinamentos. Curiosamente, até tiveram oportunidade para isso, mas se iludiram com aparência, pois não basta apenas dizer: “Senhor, Senhor” (cf. Mt 7,22), é preciso fazer a vontade do Pai. São declarados praticantes da injustiça (grego: adikia) que na Bíblia não é apenas o descumprimento da Lei objetiva, mas desobediência à vontade de Deus.
“Choro e ranger de dentes”, expressão que aparece muitas vezes relacionada à Geena (cf. Mt 5,22.29.30; 10,28; Mc 9,43; Lc 12,5), símbolo da condenação eterna. Na verdade, a Geena é um lugar em Jerusalém que se tornou um depósito para incinerar o lixo (nosso popular “lixão”); enquanto queima os resíduos, se escuta algo semelhante a um choro ou ranger de dentes. Contudo, a metáfora pode indicar o desespero (choro) e a revolta raivosa (ranger) dos condenados que se expressam como se estivessem sendo injustiçados, mas na verdade eram eles mesmos praticantes da injustiça.
Ainda que o ensinamento de Jesus denuncie a incredulidade do seu povo sobretudo dos seus líderes políticos e religiosos, a fé dos patriarcas e dos profetas ainda continua sendo uma referência exemplar para encontrar o caminho que conduz à porta estreita. Por outro lado, a salvação não está restrita a um povo, mas ela é oferta universal: “Virão homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul…”. Enquanto peregrinamos nessa terra, cujo tempo é limitado mesmo que pareça longo, não devemos nos preocupar em saber quantos se salvarão ou se perderão; o Senhor não nos deu uma máquina calculadora para, acomodados, realizarmos essa operação, mas nos oferece o evangelho para fazermos estrada. Cabe-nos, portanto, seguir os seus passos, pois só Ele é o caminho, a verdade e a vida, o Bom Pastor que vai à nossa frente e a quem o Pai (o porteiro) abrirá a porta a fim de que o seu rebanho entre e encontre pastagem e tenha vida e vida em plenitude (Jo 10). A porta é estreita, mas ainda está aberta…

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana