Dignidade do Trabalho no Magistério de São João Paulo II


Dignidade do Trabalho no Magistério de São João Paulo II


Na Festa da Exaltação da Santa Cruz, em 14 de setembro de 1981, o terceiro do seu pontificado, João Paulo II deu a conhecer ao mundo a Encíclica Laborem Exercens para celebrar o 90º aniversário da publicação de outra Encíclica, a Rerum Novarum, do Papa Leão XIII. Este documento marcou o tempo do papa polonês por trazer uma síntese do pensamento da Igreja sobre a dignidade do trabalho humano.


É mediante o trabalho que o homem deve procurar-se o pão quotidiano e contribuir para o progresso contínuo das ciências e da técnica, e sobretudo para a incessante elevação cultural e moral da sociedade, na qual vive em comunidade com os próprios irmãos. E com a palavra trabalho é indicada toda a atividade realizada pelo mesmo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das suas características e das circunstâncias, quer dizer toda a atividade humana que se pode e deve reconhecer como trabalho, no meio de toda aquela riqueza de atividades para as quais o homem tem capacidade e está predisposto pela própria natureza, em virtude da sua humanidade” inicia o discurso magisterial do Papa.


Atenção ao trabalho


Depois de recordar a importância da Encíclica de Leão XIII, publicada em 15 de maio de 1891, João Paulo II continua: “O trabalho é um desses aspectos, perene e fundamental e sempre com actualidade, de tal sorte que exige constantemente renovada atenção e decidido testemunho. Com efeito, surgem sempre novas interrogações e novos problemas, nascem novas esperanças, como também motivos de temor e ameaças, ligados com esta dimensão fundamental da existência humana, pela qual é construída cada dia a vida do homem, da qual esta recebe a própria dignidade específica, mas na qual está contido, ao mesmo tempo, o parâmetro constante dos esforços humanos, do sofrimento, bem como dos danos e das injustiças que podem impregnar profundamente a vida social no interior de cada uma das nações e no plano internacional. Se é verdade que o homem se sustenta com o pão granjeado pelo trabalho das suas mãos — e isto equivale a dizer, não apenas com aquele pão quotidiano mediante o qual se mantém vivo o seu corpo, mas também com o pão da ciência e do progresso, da civilização e da cultura — então é igualmente verdade que ele se alimenta deste pão com o suor do rosto; isto é, não só com os esforços e canseiras pessoais, mas também no meio de muitas tensões, conflitos e crises que, em relação com a realidade do trabalho, perturbam a vida de cada uma das sociedades e mesmo da inteira humanidade“.


“Se é verdade que o homem se sustenta com o pão granjeado pelo trabalho das suas mãos então é igualmente verdade que ele se alimenta deste pão com o suor do rosto”


João Paulo II


O Papa, no entanto, adverte: “Não compete à Igreja analisar cientificamente as possíveis consequências de tais mutações para a convivência humana. A Igreja, porém, considera sua tarefa fazer com que sejam sempre tidos presentes a dignidade e os direitos dos homens do trabalho, estigmatizar as situações em que são violados e contribuir para orientar as aludidas mutações, para que se torne realidade um progresso autêntico do homem e da sociedade“.


A Encíclica


Vinte e sete blocos de parágrafos de profunda reflexão formam o corpo da Carta. Nessa estrutura o Papa percorre, em primeiro lugar, o lugar ocupado pelo tema na Doutrina Social da Igreja; em seguida, faz uma retomada do sentido do trabalho na Bíblia, enfatizando o tema no  livro do Gênesis e fazendo uma breve definição técnica; depois, volta ao sentido subjetivo do trabalho relacionando-o com a pessoa de cada homem e mulher nesse mundo; Faz, na sequência, uma séria advertência: “reconhecer que o erro do primitivo capitalismo pode repetir-se onde quer que o homem seja tratado, de alguma forma, da mesma maneira que todo o conjunto dos meios materiais de produção, como um instrumento e não segundo a verdadeira dignidade do seu trabalho — ou seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo, como verdadeira finalidade de todo o processo de produção“.


A riqueza e a densidade do discurso impedem um resumo breve sem o risco de se cometer falhas graves no que o Papa deixou para a Igreja e o mundo. Em cada uma das sessões abre-se um linha de pensamento que remete ao Magistério anterior dos predecessores de João Paulo II, sobretudo aqueles que atuaram nos séculos 19 e 20. O documento trata, nesse conjunto, de  temas relacionados ao trabalho que merecem uma releitura nos tempos atuais: propriedade particular(n.os 14 e 15), empregadores e desemprego(nº 8.16-18), o trabalho da mulher (nº 19), o trabalho agrícola (nº 21), o trabalho dos emigrantes (nº 23), os deficientes e o trabalho (nº 22), sindicatos e greves (nº 20), espiritualidade do trabalho (n.os 24-27), participação na obra do Criador (nº 25) e participação na Páscoa de Cristo (nº 26).


Destaque


O nono ponto da reflexão de João Paulo II é dedicado exclusivamente ao tema do “trabalho e dignidade da pessoa”. O Papa, ao fazer o enunciado do tema, afirma:importa fazê-lo tendo sempre diante dos olhos a sobredita vocação bíblica para ‘submeter a terra’ ,na qual se expressou a vontade do Criador, querendo que o trabalho tornasse possível ao homem alcançar um tal ‘domínio’ que lhe é próprio no mundo visível”. E continua: “A intenção fundamental e primordial de Deus quanto ao homem, que Ele ‘criou … à Sua semelhança, à Sua imagem’, não foi retratada nem cancelada, mesmo quando o homem, depois de ter infringido a aliança original com Deus, ouviu estas palavras: ‘Comerás o pão com o suor da tua fronte’. Tais palavras referem-se àquela fadiga, por vezes pesada, que a partir de então passou a acompanhar o trabalho humano; no entanto, elas não mudam o facto de o mesmo trabalho ser a via pela qual o homem chegará a realizar o ‘domínio’ que lhe é próprio no mundo visível, ‘submetendo’ a terra“.


Esta fadiga é um facto universalmente conhecido, porque universalmente experimentado. Sabem-no os homens que fazem um trabalho braçal, executado por vezes em condições excepcionalmente difíceis; sabem-no os que labutam na agricultura, os quais empregam longas jornadas no cultivar a terra, que por vezes apenas ‘produz espinhos e abrolhos’; como o sabem também aqueles que trabalham nas minas e nas pedreiras, e igualmente os operários siderúrgicos junto dos seus altos-fornos, e os homens que exercem a atividade no setor da construção civil e em obras de construção em geral, frequentemente em perigo de vida ou de invalidez. Sabem-no bem, ainda, os homens que trabalham agarrados ao ‘banco’ do trabalho intelectual, sabem-no os cientistas, sabem-no os homens sobre cujos ombros pesa a grave responsabilidade de decisões destinadas a ter vasta ressonância no plano social. Sabem-no os médicos e os enfermeiros que velam de dia e de noite junto dos doentes. Sabem-no as mulheres que, por vezes sem um devido reconhecimento por parte da sociedade e até mesmo nalguns casos dos próprios familiares, suportam dia-a-dia as canseiras e a responsabilidade do arranjo da casa e da educação dos filhos. Sim, sabem-no bem todos os homens do trabalho e, uma vez que o trabalho é verdadeiramente uma vocação universal, sabem-no todos os homens sem excepção“, segue refletindo o Papa.


“O trabalho é um bem do homem porque, mediante o trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas também se realiza a si mesmo como homem e até, num certo sentido, ‘se torna mais homem‘”


Papa João Paulo II


E continua aprofundando: “E no entanto, com toda esta fadiga — e talvez, num certo sentido, por causa dela — o trabalho é um bem do homem. E se este bem traz em si a marca de um bonum arduum — ‘ bem árduo’ — para usar a terminologia de Santo Tomás de Aquino, isso não impede que, como tal ele seja um bem do homem. E mais, é não só um bem ‘útil’ ou de que se pode usufruir, mas é um bem ‘digno’, ou seja, que corresponde à dignidade do homem, um bem que exprime esta dignidade e que a aumenta. Querendo determinar melhor o sentido ético do trabalho, é indispensável ter diante dos olhos antes de mais nada esta verdade. O trabalho é um bem do homem — é um bem da sua humanidade — porque, mediante o trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas também se realiza a si mesmo como homem e até, num certo sentido, ‘se torna mais homem‘”.


O Papa conclui esse capítulo: “Sem esta consideração, não se pode compreender o significado da virtude da laboriosidade, mais exatamente não se pode compreender por que é que a laboriosidade haveria de ser uma virtude; efetivamente, a virtude, como aptidão moral, é algo que faculta ao homem tornar-se bom como homem. Este facto não muda em nada a nossa justa preocupação por evitar que no trabalho, mediante o qual a matéria é nobilitada, o próprio homem não venha a sofrer uma diminuição da sua dignidade. É sabido, ainda, que é possível usar de muitas maneiras do trabalho contra o homem, que se pode mesmo punir o homem com o recurso ao sistema dos trabalhos forçados nos lager (campos de concentração), que se pode fazer do trabalho um meio para a opressão do homem e que, enfim, se pode explorar, de diferentes maneiras, o trabalho humano, ou seja o homem do trabalho. Tudo isto depõe a favor da obrigação moral de unir a laboriosidade como virtude com a ordem social do trabalho, o que há-de permitir ao homem ‘tornar-se mais homem’ no trabalho, e não já degradar-se por causa do trabalho, desgastando não apenas as forças físicas (o que, pelo menos até certo ponto, é inevitável), mas sobretudo menoscabando a dignidade e subjetividade que lhe são próprias“.


Para o papa emérito Bento XVI a encíclica sobre o trabalho Laborem exercensconstitui um dos marcos fundamentais da Doutrina Social da Igreja


 


(Foto: Papa João Paulo II, acompanhado pelo Cardeal Paulo Evaristo Arns, no encontro com os trabalhadores, no estádio do Morumbi, em 30 de junho 1980/Memorial da Democracia)