O desafio de amar



 



“A essência mais íntima do amor é a doação. Deus, que é amor,


dá-se à criatura que Ele mesmo criou por amor.”


                                        (Edith Stein)


Amar é como emprestar sentido. Amar é ir de encontro ao outro, adentrar e fazer parte de suas fragilidades. Amar é andar nas veias do outro e fazer com que este se torne livre das cercas que o limitam. A experiência do limite nos impulsiona para a experiência do cuidado para com o outro, cuidando e amando na liberdade sem definições. Amar verdadeiramente é olhar além das definições que os nossos olhos podem nos revelar. Isto fora ensinado pelo próprio Filho de Deus, Jesus Cristo.


Em Jesus Cristo, todas as definições e limitações caem por terra. Deus não nos define, não põe cercas em seus relacionamentos. Em Deus encontramos a liberdade que tanto buscamos. O olhar de Cristo sobre nossas fraquezas não é um olhar que nos causa vergonha, ao contrário, faz com que nos encoraje a buscarmos uma vida nova. Por isso que o amor não deve ser aprisionador, ele deve ser anúncio de liberdade, amar nos torna jovens, embora estejamos permeados de rugas as quais o tempo acarretou de trazer.


O amor não nasce somente a partir das nossas exigências. É preciso que a exigência seja caridosa, seja com que o outro descubra quem realmente é. A experiência com Jesus é justamente esta: fazer com que nos encontremos com nós mesmos. As pessoas acorriam ao encontro de Jesus porque este fazia com que elas se encontrassem consigo mesmas. Jesus tinha a capacidade de fazer com que as pessoas percebessem e descobrissem que, a parir do limite humano, o amor pode florescer em nosso coração. Diante das fraquezas que as envolviam o amor nascia como solução profética de anúncio e de esperança, pois a pessoa que ama verdadeiramente é permeada de esperança, de compaixão que consiste com que o outro faça parte de nós, partilhe de nossas dores e sofrimentos, que sente-se à mesa e participe daquilo que alimenta o nosso corpo, do alimento que renova todos os dias o motivo de estarmos vivos. A dor partilhada torna o fardo leve.


Por isso, não podemos dissociar o amor do sofrimento. Quanto mais amamos, muito mais sofremos por aqueles que amamos. Amar exige lágrimas. Exige silêncio interior. É natural, é inevitável passarmos pelo processo de purificação do sofrimento. De vez em quando precisamos passar por este processo para percebermos o quão importante o outro significa em nossas vidas. É o principio da alteridade. Amar é justamente entregar uma parte nossa ao outro. Por isso que sofremos tanto quando o outro se ausenta dos nossos olhos, somos também movidos pela saudade. Os Apóstolos são testemunhas disso. Quando Jesus fora retirado da presença deles, quase todos se perderam em meio ao medo, ao desespero. A chama da esperança fora apagada nos corações destes. A experiência do amor causa mudanças em nossas vidas. Jesus causou mudanças nas vidas de todos aqueles que se aproximaram e se aproximam dele ainda hoje. É diante do sofrimento que reagimos e descobrimos os nossos limites humanos.


O poeta lusitano, Luís de Camões, descreve de maneira belíssima os efeitos do amor: “O amor é fogo que arde sem se ver. É ferida que dói e não se sente. É um contentamento descontente. É dor que desatina sem doer”. O amor é como um processo alquímico, que transmuta da inferioridade para a superioridade. O amor não acompanhado de egoísmo nos eleva sem nos retirar da realidade em que estamos situados, nos torna mais humanos e sensíveis a dor do outro. Amar é sofrimento de decantação, é processo de purificação que retira os vícios que decanta a nossa alma dos sedimentos que nos nivelam. O amor nos condiciona a novos condicionamentos sem aprisionamentos.


Quem ousa amar terá que saber que não existe amor sem sofrimento, sem o processo das lágrimas. O evangelho de João nos mostra um Deus que se compadece daqueles que ele ama. Deus também “passou” pelo processo da perda. Ao receber a notícia que aquele que ele amava estava doente, Jesus tem consciência que poderá perder a qualquer momento aquele que tanto tinha carinho e um grande afeto. Ao chegar quatro dias depois no lugar em que se encontrava o seu amigo Lázaro, descobre que este já tinha sido sepultado a quatro dias. As lágrimas são a única recepção que ele poderia receber naquele exato momento. Então, disse Marta a Jesus: “Senhor, se estivesse aqui, meu irmão não teria morrido” (Jo 11, 21). Certamente Jesus se compadece pelo anúncio de confiança que Marta o revelou. O lugar do choro faz com que nós também participemos da dor do outro, nos envolve no mistério da perda de quem tanto amamos. Chorar a perda do outro de quem tanto amamos nos faz perceber os detalhes da vida que até então não tinham grande importância. Amar é justamente perceber os detalhes da vida que a todo tempo somos envolvidos.


O evangelho nos narra que quando Jesus viu Maria chorar e também os judeus que se encontravam ali em meio a celebração do luto, comoveu-se interiormente e ficou conturbado, então chorou (Jo 11, 33-35). Chorar a dor da perda do outro não nos torna fracos, sentimentais. Dividir a dor do outro é manifestar a importância com que este tinha em nossa vida, que sua ausência marcará e deixará um profundo vazio, anunciar ao mundo as lágrimas que insistem em escapar dos nossos olhos. Percebamos que quando perdemos alguém tão importante em nossas vidas a nossa primeira reação é chorarmos, justamente porque esta é a mais bela manifestação de podermos expressar a falta que o outro nos causará em meio ao nosso cotidiano. Amar é deixar-se comover-se pelas próprias lágrimas. É processo humano enraizado em todo coração humano. Quem não ama o outro não tem ideia de Deus, “porque Deus é amor” (1 Jo 4, 8). O amor é uma força capaz de nos levar a sacrifícios concretos a ponto de tocarmos a nossa humanidade mais profunda até então desconhecida por nós mesmos. Por isso que “Deus não pode ter se encarnado em Jesus para separar, distanciar e colocar em conflitos os seres humanos. Não é possível para os humanos compreender um Deus que se humanize para desumanizá-los” (CASTILLO, 2015, p. 381).


Sempre que amamos verdadeiramente somos capazes de extrair o que há de mais sagrado em nosso ser. O amor nos faz chegar a lugares desconhecidos pelo nosso coração. O amor nos faz andar nas teias da nossa alma. O amor recíproco nos faz descobrir quem de fato somos nós. O amor de Deus está manifestado na sua chaga aberta no alto de uma cruz. Deus se deixou amar porque foi o primeiro a nos amar. Amar é deixar-se ser amado e tornar-se anunciador do amor. Amar é retirar as cercas que outros puseram nos corações alheios. O amor exerce o poder de socorrer, resgatar, limpar as feridas causadas pelo tempo, faz redimir. O amor é confissão verdadeira. O que nos fascina no outro é o que nos falta. Amar é fascinasse pelo outro. O amor não egóico, é resgatasse das necessidades que nos acompanham dia a dia, nos salva das nossas carências, nos purifica e nos aproxima de Deus. É uma forma de suprimir das nossas limitações humanas e nos tornar responsáveis pelos nossos olhares. Amar não é projeção. Amar é tornar-se amigo da libertação. Amar é reconhecer-se no outro sem definições.


Ao reconhecer no outro o que me falta, descubro dentro de mim, a partir dele, o recurso que me proporciona a saída. Este é o papel de todo cristão. O amor não vive por nós, mas sustenta o nosso viver. Ele nos causa impulso diante das nossas limitações, nos exige transformações a todo tempo, nos chama a aprimorar o nosso “eu” que é voltado para um “tu”. Este aprimoramento só se torna possível a partir do momento em que assumimos as consequências das nossas ações, dos nossos olhares. É o sofrimento por amor. Por amor a nós mesmos, por amor ao outro, por amor a Deus. Amar é a necessidade de gastar-se pelo outro, de nos deixar lapidar pelos olhares menos julgadores e mais transformadores. Só quem ama é capaz de sacrifícios. Esta é a regra do amor. O amor se define pelos acontecimentos da vida cotidiana, pois são através destes que descobrimos quem realmente nos amam e nos tornam livres. Só o amor pode nos socorrer de nossas misérias. Talvez seja por isso que o escritor americano Henry Van Dyke tenha dito de forma tão belíssima quando falava sobre o amor:


O tempo é muito lento para os que esperam
Muito rápido para os que têm medo
Muito longo para os que lamentam
Muito curto para os que festejam
Mas, para os que amam, o tempo é eterno.


Referências Bibliográficas   


– Bíblia de Jerusalém


– CASTILLO, José M. Jesus: a humanização de Deus: ensaio de cristologia. Trad. de João Batista Kreuch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.