Solenidade de todos os Santos e Santas de Deus – Bem-aventuranças: santidade feliz (Mt 5,1-12ª)

A Solenidade de todos os Santos e Santas de Deus nos favorece uma oportuna ocasião para recordarmos a meta de vida do ser humano: a santidade. O Concilio Vat II afirmou que a santidade não é privilégio de alguns, mas todos são chamados à santidade (cf. LG,39). As bem-aventuranças proclamadas por Jesus nos indicam o caminho para alcançarmos a plenitude da verdadeira felicidade. As Bem-aventuranças colocadas no início da vida pública de Jesus servem de uma consistente introdução àquilo que será desenvolvido em todo o resto do evangelho sobretudo em duas perspectivas complementares. Se, por um lado, as palavras de Jesus se dirigem aos seus ouvintes, ao menos como provocação ou proposta a ser acolhida, por outro, tudo o que Ele diz será demonstrado na sua própria vida e missão. Não seria forçoso dizer que Ele é o bem-aventurado por excelência. Não dá receitas fáceis para encontrar a felicidade mágica, mas a sua vida apresenta-se como o caminho para a verdadeira felicidade. Para além das dificuldades e sofrimentos, o destino de plenitude não será alterado.

“Bem-aventurados os pobres em espírito”. Esta primeira afirmação de Jesus como garantia de felicidade é revestida de toda a autoridade, pois não se trata de uma proposição teórica, mas é a realidade da sua própria. A pobreza de Jesus não é tema de poesia ou pio conselho para os seus interlocutores, mas a configuração de sua existência terrena, é a marca distintiva da sua encarnação. São Paulo testemunha essa verdade quando afirma: “Com efeito, conheceis a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que por causa de vós se fez pobre, embora fosse rico, para vos enriquecer com a sua pobreza.” (2Cor 8,9).

“Bem-aventurados os mansos (humildes)” O que significa ser manso? A nossa sociedade apresenta a mansidão quase como apatia, inércia, acomodação. O manso é aquele que não reage, para quem tudo está bom.  Esta é uma das bem-aventuranças que o próprio Jesus atribui a si mesmo: “Sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Corroborando com o aspecto convidativo da bem-aventurança, Ele explicita dizendo: “Aprendei de mim”. Portanto, se Jesus é o bem-aventurado por excelência, nenhuma bem-aventurança por Ele proclamada pode ser compreendida fora do alcance daquilo que Ele viveu e que, por sua vez, se tornou proposta de vida para quem O segue.

“Bem-aventurados os aflitos”. Esta bem-aventurança evidencia ainda mais o caráter paradoxal da afirmação. Como é possível ser feliz sendo aflito?  Em português “aflito” que (Latim AFFLIGERE, palavra composta do prefixo AD, “a, para”, mais FLIGERE, “bater, golpear”) indica alguém que está interiormente angustiado, uma perturbação interior que o leva quase ao desespero, por ter sido atingido por algo externo que o levou a tal situação interior. Poderíamos dizer que o golpe externo foi tamanho que o desestabilizou a ponto de perder a direção. Aflito é, portanto, uma tentativa de traduzir a palavra grega penthountes (do verbo penteo: lamentar, estar de luto) estar triste. É, então, possível afirmar que esta bem-aventurança ocupa paradoxalmente o centro da nossa perspectiva, pois estamos falando do tema da alegria. A construção aparentemente contraditória das bem-aventuranças chega ao seu auge. Pois se bem-aventurança é felicidade, cujo sintoma é alegria, a infelicidade tem como sintoma a tristeza.

“Bem-aventurados os que têm sede e fome de justiça”. Antes de tudo, a fome e sede usadas aqui como metáforas que indicam um sentimento de falta e busca intensos nos remetem a momentos decisivos e marcantes da história do povo de Deus. Sobretudo a caminhada no deserto é marcada pela fome e pela sede. Não ter o que comer ou beber não é idêntico a ter fome e sede. Sentir fome ou sede é algo próprio do ser humano, está inscrito no dinamismo vital do seu organismo. Por isso não tem conotação negativa. Sede e fome indicam os desejos mais genuínos do coração humano, pois os leva a realizar a vontade de Deus na sua vida.

“Bem-aventurados os misericordiosos”. Jesus viveu intensamente essa bem-aventurança.  O evangelho está repleto de situações em que vemos a misericórdia de Jesus em ato, e não apenas ensinamentos teóricos sobre o tema. A promessa: “E alcançarão misericórdia”, não significa uma espécie de seguro preventivo para tornar o outro o seu refém. Não tem como motivo reforçar a ideia de garantir a retribuição de cumplicidade na inversão de papéis: “hoje você errou, eu não o condenei, amanhã quando eu errar, você também não me condene!”. A misericórdia, na tradição bíblica, não se origina em nós, e, portanto, não é fruto de pactos ou concordatas entre cúmplices, mas amor verdadeiro que leva a comprometer-se com o outro, gerando comunhão na troca de bens espirituais e não cumplicidades nas gratificações de consciência.

“Bem-aventurados os puros de coração” Santo Agostinho afirma: “Tu que ainda não vês a Deus, merecerás vê-lo se amas o próximo; amando-o, purificas teu olhar para veres a Deus… Amando o próximo e cuidando dele vais percorrendo o teu caminho… É certo que ainda não chegamos até junto do Senhor, mas já temos o próximo conosco. Ajuda, portanto, aquele que tens ao lado enquanto caminhas neste mundo, e chegarás até junto daquele com quem desejas permanecer para sempre”.

“Bem-aventurados os que promovem a paz”. Só há uma maneira de sermos chamados por Deus de filhos seus: participando da batalha do seu Filho, o verdadeiro construtor da paz. Não é possível ser chamado filho de Deus se não recebermos a graça da filiação que nos vem da morte e ressurreição de Jesus. O próprio Jesus, segundo a linguagem paulina, que é a nossa paz, nos ajuda a distinguir a paz que o mundo dá daquela que Ele alcançou para nós.

“Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça”. Esta oitava bem-aventurança introduz um tema muito presente no evangelho de Mateus que é a justiça, e muitas vezes qualificada como Justiça do Reino, diferente da justiça dos escribas e fariseus (5,20). O justo na Bíblia não é simplesmente aquele que cumpre uma lei, mas quem é capaz de discernir a vontade de Deus e colocá-la em prática.

“Bem-aventurados sois vós… Alegrai-vos”. Chegamos assim à última bem-aventurança que, por sua vez, torna ainda mais evidente a sua lógica paradoxal. Poderíamos dizer que a primeira e a oitava bem-aventuranças dão o quadro externo do ensinamento inaugural de Jesus sobre a verdadeira felicidade e suas indispensáveis condições. A nona condensa, por assim dizer, todo o seu ensinamento. Esta bem-aventurança está desdobrada em cada uma das anteriores. Injuria e perseguição, acusação e mentira por causa de Jesus são vivenciadas por quem é manso, aflito, sedento e faminto de justiça, misericordioso, puro de coração, promotor de paz; tudo isso é claro sempre na lógica da justiça do Reino dos Céus.

Se nos parece difícil viver o evangelho ao escutá-lo, tornar-se possível quando o vemos encarnado nos santos e santas, cujas vidas comprovam que é possível vivê-lo.

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana