Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana
Chegamos praticamente ao final do ano litúrgico (Ciclo Dominical B). Fizemos um percurso de leitura continuada do evangelho de Marcos que nos ajudou a seguir os passos de Jesus, crescendo no conhecimento da sua pessoa e no desafio de fazer nosso o seu caminho. Por conseguinte, durante esse caminho de revelação de sua Pessoa, fomos provocados a fazer escolhas entre seguir o Messias sofredor até a cruz, e testemunhar a sua ressurreição, ou tomados de pavor e medo, fugir e abandoná-lo. Em tons apocalípticos e proféticos, a perícope deste XXXIII Domingo do Tempo Comum nos apresenta quais serão as consequências de acordo com a opção que fizermos. Em outras palavras, ficaremos aterrorizados pelo medo da destruição do mundo ou nos empenharemos na luta contra tudo aquilo que o destrói, certos de que o Filho do Homem já é vitorioso?
Muitos estudiosos chamam esta parte do evangelho de Marcos de Discurso Escatológico (Mc 13), pois trata de temas relacionados a um “fim” (grego: escaton); a linguagem utilizada (catástrofes, guerra, destruição, abalos cósmicos) é chocante e ameaçadora para quem não é familiarizado com as tradições bíblicas já presentes no Antigo Testamento. O gênero literário aqui utilizado não tem como finalidade descrever cinematograficamente o fim do mundo, nem muito menos antecipar profeticamente a sua destruição final. Mas é um modo muito peculiar de ajudar a refletir, através de imagens vibrantes, que Deus não está ausente ou é indiferente diante da injustiça, do sofrimento e da perseguição. É muito comum em contextos de sofrimento, constatar uma tendência de pensar que Deus é impotente, pois não se manifesta de modo imediato para fazer justiça ou mesmo socorrer os que estão sofrendo injustamente. Contrapondo-se a esse tipo de interpretação superficial da realidade, o gênero apocalíptico, por sua vez, anuncia que Deus toma sim partido em favor do seu povo. A maneira pedagógica de fazer este anúncio é muito rica em imagens e símbolos, inspirados nas manifestações da natureza como indícios da presença ativa de Deus (teofanias) muito marcantes na história da experiência humana, sobretudo de povos primitivos. Falar de abalos cósmicos é uma maneira concreta de anunciar o desmoronamento de um mundo, que evidentemente não é aquele criado por Deus. É a boa notícia de que os vários sistemas frutos da ambição, maldade e do egoísmo humanos, que deformaram a criação original, provocando o caos e a cultura da morte, passarão, pois estão desaparecendo.
Esta página do evangelho evidentemente deixa transparecer algumas situações históricas cujas consequências tiveram repercussão na vida das comunidades primitivas, sobretudo a destruição de Jerusalém (70 d.C.), e portanto influenciaram na linguagem utilizada. Contudo, sendo Palavra de Deus, não se refere apenas a uma situação do passado, mas se reveste de um caráter profético que vai para além de um dado momento histórico. É a reafirmação de que o projeto de Deus se realiza ao longo da história, alcançando seu auge na instauração definitiva do Reino como veremos na Festa de Cristo-Rei. Em consonância com a tradição apocalíptica, Marcos utiliza o simbolismo cósmico (sol, lua, estrelas) para apresentar o tempo messiânico como uma nova criação, em contraposição às estruturas antigas que são abaladas, pois o Messias, que está acima de tudo isso, vem para estabelecer relações totalmente novas. Como na primeira criação, o sol, a lua e as estrelas figuram entre as primeiras obras criadas (4º dia), agora na nova criação, iniciada pelo Messias Jesus, elas são as primeiras a serem renovadas, porque foram as primeiras a serem deformadas. Prova disso é o fato de que povos antigos adoravam os astros como se fossem deuses menores; na Babilônia, o povo de Deus teve que lutar para não se deixar contaminar com esta mentalidade. Portanto, tudo isso precisa desaparecer. Porém, sendo uma linguagem simbólica, esses elementos não devem ser entendidos de forma realista, mas a convulsão pela qual passam é consequência da deformação que o ser humano fez deles. Além do mais, esses astros, na linguagem simbólica, também representam estruturas de poder e de dominação política e religiosa. No Egito, o Faraó era considerado filho do deus sol (Ra), e no panteão grego, a lua também é uma deusa (seles).
Portanto, afirmar que: “O sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas estarão caindo do céu…” significa dizer que a chegada do Reino de Deus provoca a queda dos poderes humanos opressores (Roma) e o desmoronamento dos falsos deuses (pagãos).
O Messias Sofredor, que se encaminha para o sofrimento e a morte, é o Filho do Homem, que está acima de tudo isso: “E verão o Filho do Homem vindo entre as nuvens com grande poder e glória”, é Ele o protagonista dessa nova ordem, iniciada com o anúncio da sua Boa Notícia, pois: “O tempo completou-se… o reino está próximo” (Mc 1,15). Jesus não anuncia o fim cronológico (cronos:tempo quantitativo) da criação, pois não veio para destruir o que o Pai criou, mas a sua vinda ao mundo representa o anúncio e a manifestação de que o tempo novo chegou (kairós: tempo da graça), ou seja, é agora o momento de levar a cumprimento o objetivo da criação, aquilo que é a sua finalidade: “Pois tudo foi criado por ele e para ele” (Cl 1,18). Ele é a Palavra eterna do Pai que existe antes de tudo, antes mesmo da criação do mundo. Pois o próprio mundo veio a existir por força da sua Palavra (“Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito de tudo o que existe”, Jo 1,3). Portanto, ainda que passe o céu e a terra, esta Palavra não passará.
Por outro lado, o desafio para perceber esta nova ordem já instaurada é conservar-se sempre numa atitude de vigilância (“Atenção, e vigiai”, Mc 13,33). A parábola da figueira inserida nesse contexto ilustra bem o que significa essa atitude. A vigilância é um tema constante no Antigo Testamento e diz respeito à condição fundamental de quem deseja colaborar no plano da criação, lutando contra toda deformação do projeto original. Israel é constantemente desafiado a vigiar. E tal vigilância é, antes de tudo, confiar na Palavra de Javé (Sl 130,5), pois é Ela que indica o caminho a seguir. No Novo Testamento, por sua vez, vigiar significa a disponibilidade para cooperar com Aquele que instaura o Reino dos céus (“Vigiai, portanto, pois não sabeis quando o senhor da casa voltará”, Mc 13,35). Jesus, com esta parábola, alerta para a necessidade de “aprender” a ler os sinais dos tempos, e reforça nos seus ouvintes o desafio de estar em permanente atitude de discípulo, ou seja, aquele que aprende e, por conseguinte, não se deixar enganar (“Atenção para que ninguém vos engane!” Mc 13,5).
Esta nova criação tem a sua realização em dois momentos fundamentais e que estão intrinsicamente unidos: a chegada do Filho do Homem (Encarnação-parusia) e a convocação universal do novo povo de Deus, após a sua ressurreição: “Então o Filho do homem aparecerá, vindo das nuvens com grande poder e glória. Enviará os anjos aos quatros cantos da terra para reunir os eleitos…” (13,26-27). Marcos evidencia a realização deste projeto, por um lado, na morte de Jesus quando o centurião pagão, adorador dos astros e representante do sistema de dominação, exclamou: “Verdadeiramente este homem era o filho de Deus” (15,19), testemunhando assim a queda do seu sistema político e religioso. Não são mais o sol, a lua ou as estrelas as divindades a serem reconhecidas, mas aquele homem pregado e morto na cruz é o verdadeiro Deus. Por outro lado, a ressurreição do Messias sofredor inaugura o momento (kairós) marcado pelo testemunho e a pregação dos seus discípulos enviados em missão: “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho” (Mc 16,15), reunindo, assim, dos quatro cantos da terra os eleitos pela força da Palavra que criou tudo e que é a mesma Palavra que tudo recria, pois ela não passará.