Quinta-feira Santa: Jo 13,1-15 – O amor antes de ser traído, entrega-se
O IV Evangelho, diferentemente dos sinóticos, não narra explicitamente a instituição da Eucaristia na última ceia. Porém, isto não significa que o evangelista tenha minimizado a sua importância; pelo contrário, ele já havia se antecipado no capítulo 6 com uma profundíssima reflexão sobre o tema: o discurso do Pão da Vida, após a multiplicação dos pães. A Eucaristia, porém, como memorial da Páscoa de Jesus, é apresentada por João, nos seus elementos fundamentais, no gesto do lava-pés. Tal gesto, por causa do seu caráter simbólico, característica fundamental do IV Evangelho, é muito eloquente para falar do memorial da paixão, morte e ressurreição do Senhor, pois anuncia que “chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai”. Portanto, cada ação de Jesus, no lava-pés, evoca gestos eucarísticos (tomar, agradecer, partir e dar), pois é, evidentemente, uma referência à sua vida, morte e ressurreição. Lavando os pés dos seus discípulos, o Mestre não está apenas dando um exemplo isolado de humildade, mas está sintetizando toda a sua passagem por este mundo. Assim sendo, a Páscoa de Jesus se realiza durante toda a sua vida: “pois viera de Deus e a Deus voltava”, e a sua passagem por este mundo é marcada por um amor constante: “amando até o fim” (grego: eis telos, até os extremos, definitivamente). Amor que alcançou a sua expressão mais plena na entrega de sua vida, morrendo na cruz: “Não há maior amor do que dar a vida” (Jo 15,13).
João, com a expressão “Antes da festa da Páscoa”, não pretende apenas indicar uma anterioridade temporal, mas sublinha que a entrega de Jesus é o fundamento de toda a história da Salvação, isto é, a sua oferta está antes e na base de tudo. Por conseguinte, a Páscoa dos Judeus, a libertação do Egito, cuja celebração era iminente, só aconteceu porque antes dela, Javé havia passado (Ex 12,12). Sem esta Páscoa de Javé, não haveria nenhuma outra passagem. Por isso, a encarnação do Verbo é o início de sua páscoa e o fundamento da criação. Toda a criação perderia a sua razão de ser se, por ela, o seu Criador não tivesse passado e não se fizesse presente: “Pois tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito de tudo o que existe” (Jo 1,3).
Aspectos fundamentais do Lava-pés referentes à Eucaristia:
1.“Sabendo que o Pai tudo colocara em suas mãos”: esta afirmação contrapõe-se ao plano do príncipe das trevas que, por sua vez, “tinha colocado no coração de Judas o projeto de entregá-lo” (grego: ballo, jogar – na forma do perfeito indica uma ação no passado, mas com consequências no presente, isto é, a traição de Judas não foi uma ação pontual, isolada, mas ápice de um processo). A consequência histórica desse confronto entre o projeto de Deus e o projeto do diabo torna-se evidente na cruz. A Eucaristia faz memória deste conflito, pois atualiza o sacrifício da cruz, ao mesmo tempo que anuncia a vitória do Cordeiro imolado, que derrota as forças do mal e da morte, com a sua ressurreição. Segundo a sua tradição mais antiga (1Cor 11,23-26), a Eucaristia é o anúncio da morte do Senhor recordando o que Ele fez na última ceia, e o primeiro gesto de Jesus é tomar o pão e o cálice (nas mãos) para proferir a bênção. Portanto, a Eucaristia faz memória de todo o agir de Jesus, daquilo que o Pai colocara em suas mãos: a missão de salvar. E são essas mesmas mãos que tomaram o pão e o vinho para transformá-los em seu corpo e sangue (“eucaristizando-os”), que acolheram as crianças, proclamando-as modelo para o discipulado (Mc 10,13-16), que ergueram os doentes para se colocarem a serviço (Mc 1,29-31), que sustentaram Pedro que vacilava na fé (Mt 14,31), que manifestaram a sua misericórdia tocando nos leprosos a fim de purificá-los (Mc 1,41), que restituíram a vida aos mortos (Mc 5,41; Lc 7,11-17), que abriram os ouvidos dos surdos para acolherem a Palavra de salvação (Mc 7,32), que expulsaram os demônios, libertando o ser humano do domínio do mal (Mc 9,27), e que perfuradas, serviram de discernimento para ser reconhecido como o verdadeiro Senhor, que morreu e ressuscitou (Jo 20,20). Por fim, foram essas mesmas mãos que abençoaram os discípulos, enviando-os em missão, para serem suas testemunhas fazendo memória do que Ele fez (Lc 24,50).
2. “Levanta-se da mesa, depõe o manto”: neste gesto, Jesus não abdica do seu poder (simbolismo do manto), mas o coloca à disposição (grego: tithemi, depor, colocar à disposição). Este verbo é utilizado por João quando Jesus fala da entrega de sua vida: “Ninguém tira a minha vida, mas eu a dou (coloco à disposição) livremente” (10,18). E mais explicitamente quando indica a vida dada pelas ovelhas como cumprimento da vontade do Pai (Jo 10,11.17.18). Portanto, o segundo gesto eucarístico (dar graças) se anuncia nesta atitude de Jesus de entrega de sua vida como o perfeito sacrifício, a verdadeira ação de graças: “Não quiseste sacrifício e oferenda… Eis que eu vim para fazer a tua vontade” (Hb 10,5.9).
3. “Se eu não te lavar não terás parte comigo”: no gesto do lava-pés, Jesus anuncia que pretende repartir a sua vida (missão) com os discípulos, como fez ao partir o pão. Deixar-se lavar (caráter batismal) por Jesus é aceitar mergulhar no mistério da sua morte, a fim de poder ressuscitar com Ele: “Mais tarde compreenderás”. Pedro resiste pois não quer aceitar que ser discípulo do Mestre-servo exige compartilhar com ele o seu modo de agir: serviço; e o seu destino: a morte de cruz. A Eucaristia, sendo pão partido, é anúncio de missão compartilhada até as últimas consequências.
4. “Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também o façais”: nestas palavras finais de Jesus, encontramos uma referência clara ao último gesto eucarístico: dar, entregar (grego: didomi) e, portanto, um paralelo evidente com a expressão conclusiva da narração da instituição: “Fazei isto em memória de mim”. Este mandamento de Jesus não pode ser compreendido apenas como uma ordem de realizar um rito, mas exige um compromisso de atualização de tudo o que Jesus fez, pois a Eucaristia é memorial de toda a sua vida e não apenas de um gesto isolado. Ao afirmar ter dado o exemplo (grego: hypodeigma, mostrado por baixo), o Mestre não está ensinando o que os outros devem fazer, mas relembrando o que ele fez durante toda a vida. Não é demonstração artificial, mas revelação do que está por baixo, no fundamento.
O lava-pés como anúncio simbólico da páscoa de Jesus e a Eucaristia como atualização da morte e ressurreição do Senhor testemunham que o amor, apesar de traído, nunca desiste de entregar-se.
Sexta-feira Santa: Jo 18,1-19,42 – A liberdade soberana do Crucificado
A celebração da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo não é, lamentavelmente como pensam alguns, a teatralização de um velório transitório marcado por luto e pranto para favorecer um sentimentalismo artificial e estéril. A comunidade do Ressuscitado crê que Ele está vivo, por isso não se reúne para oficializar suas exéquias, mas para fazer memória da sua bem-aventurada e gloriosa Paixão, pois, caso contrário, estaria traindo o seu verdadeiro Senhor, o mesmo que morreu e ressuscitou. Já no cristianismo primitivo havia uma tendência a minimizar a Paixão e Morte de Jesus, com a desculpa de que Ele estava vivo. Por isso, o próprio São Paulo não se cansava de denunciar este perigo: “Sede meus imitadores… Pois há muitos dos quais muitas vezes eu vos disse e agora repito, chorando, que são inimigos da cruz de Cristo” (Fl 3,17-18). Ter diante dos olhos a imagem do Cristo crucificado não é tendência masoquista, mas necessidade permanente de quem deseja conhecê-lo, amá-lo e dele se tornar uma testemunha no mundo: “Quem quiser ser meu discípulo renuncie a si mesmo tome a sua cruz e me siga” (Mt 16,24). O anúncio da vitória de Cristo perde a sua força se não for precedido pela memória da sua Paixão e Morte. Diante da tendência hodierna de um cristianismo light, soft e self-service, sem sacrifícios e abnegação amorosa, urge repetir o alerta de São Paulo: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou, a vós ante cujos olhos foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado?” (Gl 3,1).
Todos os evangelistas narram, a partir de suas respectivas teologias, a Paixão e Morte do Senhor. Contudo, para este dia, a Igreja escolheu a narração de João, que não nos transmite apenas um relato dos fatos em terceira pessoa, mas é ele mesmo a testemunha-contemplativa desse acontecimento: “Aquele que viu dá testemunho e seu testemunho é verdadeiro; e ele sabe que diz a verdade, para que vós creiais”. Portanto, fazer memória da Paixão e Morte do Senhor é imprescindível para conhecer a sua verdade e dar testemunho dele, sermos de verdade seus discípulos amados.
E o que viu João e deve ver todo cristão ao contemplar o mistério do sofrimento e da morte do seu Senhor?
1. A coragem de Jesus, que toma a defesa dos seus discípulos: “Se é a mim que procurais, então deixai que estes se retirem”. Ele defende a nossa vida.
2. A fidelidade de Jesus ao Pai, apesar do iminente sofrimento: “Não vou beber o cálice que o Pai me deu?” Ele derramou seu sangue por nós.
3. A confiança de Jesus nos seus discípulos: “Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que falei; eles sabem o que eu disse”. Ele tem palavras de vida eterna.
4. A indignação de Jesus diante da injustiça: “Se respondi mal, mostra em quê; mas se falei bem por que me bates?” Ele nos ensina a lutar contra toda sujeição e opressão.
5. A verdade testemunhada por Jesus: “Eu nasci e vim ao mundo para isto: dar testemunho da verdade. Quem é da verdade escuta a minha voz”. Ele nos torna verdadeiramente livres.
6. A filiação de Jesus repartida com os seus seguidores: “Mulher, este é o teu filho; Esta é tua mãe”. Ele não nos deixou órfãos.
7. A garantia de vida nova concedida pelo dom do Espírito de Jesus: “E, inclinando a cabeça, entregou o espirito”. Ele nos constitui povo da Nova Aliança derramando o seu espírito sobre nós.
Naquela tarde de sexta-feira, no altar da cruz, e nesta sexta-feira de hoje, deparamo-nos com o ponto mais alto da revelação da verdade sobre Jesus. Não evoca-se apenas o seu sofrimento e a sua morte, mas a sua encarnação, pois ele mesmo afirma diante de Pilatos para que veio ao mundo; na sua flagelação, o auge de todas as rejeições e perseguições sofridas ao longo do seu ministério; no seu grito: “Tenho sede”, a confirmação de toda a sua missão de matar a sede da humanidade: “Quem tiver sede, venha a mim e beba… De seu seio jorrarão rios de água viva” (Jo 7,38). Na entrega do seu Espírito, o anúncio do dom de sua ressurreição.
Cristão que chega só na Vigília Pascal ou no Domingo da Ressurreição é como torcedor que aguarda, em casa, apenas o resultado da partida; certamente alegra-se com a vitória, mas por não ter vibrado com convicção enquanto seu time lutava, não sabe quanto suor e sangue foram derramados para depois poder levantar aquela taça, não sabe quanto vale aquela vitória. Terá apenas informação de um placar frio e sem vida.
A vitória de Jesus ressuscitado tem as marcas indeléveis do Cristo crucificado. Se as amarras da morte e a pedra do sepulcro não o aprisionaram na morte foi porque na cruz ele testemunhou sua liberdade soberana: “Ninguém tira a minha vida, mas eu a dou livremente. Tenho o poder de entregá-la e poder de retomá-la” (Jo 10,18).
Vigília Pascal: Lc 24,1-12 – A Esperança nos diz o que aconteceu
Chegamos ao ponto mais alto e solene do Ano Litúrgico e como dizia Santo Agostinho celebramos nesta noite “a mãe de todas as vigílias”, e ratifica a Igreja permanentemente que a celebração do Mistério Pascal é fonte e ápice de toda a vida cristã.
Mais do que uma solene liturgia, mergulhamos realmente no mistério da morte e ressurreição do Senhor, a nossa esperança. O caráter pedagógico da celebração nos ajuda a fazer essa experiência. Para os catecúmenos é a noite do novo nascimento, para os já batizados é o momento de renovar suas promessas de viver verdadeiramente como batizados, filhos e filhas de Deus.
A força simbólica dos ritos realizados nesta noite não deve apenas nos deixar emocionados por sua beleza, mas antes de tudo convictos por causa da sua verdade: Cristo morreu e ressuscitou verdadeiramente, e disto somos testemunhas. Os quatro momentos que compõem a celebração (Rito da Luz, Liturgia da Palavra, Liturgia Batismal, Liturgia Eucarística) nos fazem mergulhar numa dimensão atemporal onde a lógica da cronologia linear perde o seu sentido; não há mais nem passado esquecido nem futuro desconhecido, pois, à luz da ressurreição do Crucificado, toda a história é relida e a eternidade se faz presente: Ele é o Alfa e o Ômega, Princípio e Fim. Assim, no princípio se anuncia o fim, e no fim realiza-se o princípio. Toda a celebração faz uma retrospectiva, mas também cria uma perspectiva, porém o eixo que as equilibra é a presencialidade da salvação.
1. No Rito da Luz se faz retrospectiva do princípio de tudo: existir é vir à luz. Contudo, a luz verdadeira é o Verbo eterno que entrou na história e, ao morrer e ressuscitar, iluminou definitivamente toda a criação.
2. Na Liturgia da Palavra faz-se a retrospectiva de todo o caminho de iluminação da Palavra de Deus ao longo da história. Contudo, é a Palavra Encarnada que se revela a luz verdadeira, a Palavra definitiva do Pai, o ponto mais alto da sua comunicação.
3. Na Liturgia Batismal faz-se retrospectiva dos grandes feitos do Senhor para dar vida à humanidade. Contudo, a vida plena é dom da morte e ressurreição de Cristo cujo penhor é o batismo.
4. Na Liturgia Eucarística faz-se a retrospectiva do evento libertador de Deus para salvar o seu povo da escravidão. Contudo, a nova e definitiva aliança se estabelece na entrega de Jesus, cujo corpo e sangue partilhamos.
O evangelho desta noite, segundo São Lucas, além de relatar a descoberta que as mulheres fizeram num primeiro momento de que o túmulo estava vazio, é uma verdadeira catequese do que significa a experiência da comunidade de fé diante da sua missão de anunciar a ressurreição de Jesus, a vitória de Cristo e suas consequências para a humanidade.
Em sintonia com as demais narrativas evangélicas, São Lucas situa toda a cena com a referência “No Primeiro dia da semana”. Naturalmente pensamos que essa expressão corresponde ao nosso “domingo” (Dia do Senhor), contudo os judeus têm um modo diferente de dizer os dias da semana que são sempre relacionados ao sábado (semana é chamada de sábados, então o nosso domingo literalmente: o primeiro dos sábados). Com essa expressão somos levados ao início de tudo, o primeiro dia da criação (Gn 1,1: “No princípio…”). Por conseguinte, podemos entender que o evangelista está dizendo que a ressurreição de Jesus dá início à nova e definitiva criação. O próprio Novo Testamento chama Jesus ressuscitado de o primeiro nascido. Assim como na primeira criação o cenário é de trevas que cobrem a terra, as mulheres vão ao sepulcro de madrugada (literalmente no grego: orthrou bathéos, escuridão profunda). A razão da ida das mulheres bem cedo ao sepulcro é indicada por São Lucas quando diz: “Levando aromas que prepararam”. Portanto, a expectativa era encontrar o corpo morto de Jesus para concluir os ritos fúnebres. Como na primeira criação, o caos é rompido pela palavra de Deus que cria a luz, a pedra retirada do sepulcro cria admiração e incompreensão (grego: aporeithai, estarem perplexas). A pedra removida provoca a pergunta: quem a removeu e quais as consequências disso? Diante do caos das origens e diante da perplexidade das mulheres, só a Palavra de Deus tem poder de banir a confusão e o medo: “Dois homens com roupas brilhantes pararam perto delas”. Não precisaríamos de muito esforço para recordar uma cena parecida a esta no evangelho, isto é, a Transfiguração de Jesus, quando aparecem envoltos em glória Moisés e Elias. Só São Lucas explicita o que conversavam: “O êxodo que iria acontecer em Jerusalém” (Lc 9,31). Moisés e Elias representantes das Escrituras agora testemunhas de que elas se cumpriram. Claro que não há uma identificação explícita desses dois homens que aparecem às mulheres com Moisés e Elias, porque conta mais serem dois, isto é, o número mínimo exigido para que o testemunho seja aceito como verdadeiro. Como na Transfiguração se ouviu a voz que dizia: “Este é o meu Filho, escutai-o”, agora os dois interlocutores afirmam: “Lembrai-vos do que ele vos disse”. Ir ao túmulo, por um momento, pode parecer não acreditar nas palavras de Jesus que disse: “O Filho do homem deve ser entregue, ser crucificado, e ressuscitar ao terceiro dia”. Portanto, é evidente a coerência na palavra dos dois homens: “Por que estais procurando entre os morros aquele que está vivo?”. Mas por outro lado, não podemos anunciar a ressurreição se o Ressuscitado não for Aquele que morreu na cruz e foi sepultado no sepulcro que agora está vazio.
A liturgia nos favorece a mesma experiência das mulheres que ouviram os dois homens (representantes das Escrituras), mas que fizeram memória das palavras de Jesus, e por isso acreditaram na sua ressurreição. São Lucas faz um paralelo muito significativo entre túmulo (grego: mnemeion) e o recordar das mulheres (grego: emnsthesan) ambas as palavras têm a mesma raiz “fazer memória”. Portanto, no túmulo se faz recordação (memória) da morte, mas é na recordação das palavras de Jesus que encontramos o fundamento da fé na sua ressurreição. Não há problema ir ao túmulo, mas é preciso volta de lá convictos de que ele ressuscitou e por isso não está lá.

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana