Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Desde o cristianismo primitivo se tem utilizado a imagem da barca para falar da Igreja e a pesca para indicar a sua missão. Esse simbolismo tem a sua inspiração na própria realidade como nos é apresentada no evangelho de hoje. Jesus ao iniciar a sua missão quis contar com a colaboração de pessoas, e entre elas aparecem em primeiro lugar os pescadores, os quais foram chamados por Jesus enquanto se encontravam no seu ambiente de trabalho. Já na Tradição profética, a pesca era um símbolo dos últimos tempos (figura escatológica do julgamento de Deus: Jr 16,16). Portanto, chamar pescadores em primeiro lugar para a missão é confirmar que a evangelização da Igreja inaugura o tempo de graça, o kairós, o tempo favorável para acolher a salvação, o hoje de Deus (4,21).
Tudo tão comum, nada de extraordinário: homens trabalhando na pesca, usando barcas e redes, porém sem sucesso na sua labuta. Quando tudo se encaminha para uma conclusão frustrante: “Trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”, a obediência à palavra de Jesus provoca uma mudança radical a ponto de superar as expectativas, consolidando a confiança Nele e tomando a firme decisão de deixar tudo e segui-Lo.
Para compreendermos bem o significado e alcance da narração de São Lucas ao descrever o chamado dos primeiros discípulos no contexto da pesca milagrosa, com detalhes próprios que marcam a diferença em relação aos textos paralelos dos outros evangelhos sinóticos (Mt 4,18-21; Mc 1,16-20), é importante fazer um paralelo entre a ação dos pescadores (saindo da barca e lavando as redes) e a ação de Jesus (subindo na barca e ensinando). Os pescadores que desembarcam (grego: apo-bantes, ir embora, afastar-se) indicam as muitas situações que marcam a história humana tanto pessoal quanto coletiva, quando diante de insucessos e tentativas frustradas, há sempre a tentação de abandonar tudo e desistir. Na história da Igreja, essa tentação está presente desde os seus primórdios, as primeiras crises em tempos de perseguição e as outras que se seguiram. Infelizmente, nem sempre nessas situações estamos dispostos a repensar o que estamos fazendo ou deixando de fazer que impede o bom êxito da missão. Desembarcar, recolher as redes, abandonar o barco, talvez seja o mais cômodo e atraente. Contudo, Jesus nos conduz noutra direção: “Subindo na barca…tendo se sentado, ensinava” (grego: embás, subir para dentro… kathisas mesma raiz de cátedra, sentando-se para ensinar).
Vale salientar que a finalidade de Jesus entrar na barca é, estratégica e didaticamente, a partir dela ensinar as multidões que acorriam a Ele a fim de ouvir a Palavra de Deus; por outro lado, São Lucas não explicita nenhum discurso de Jesus nesse seu ensinamento, como noutras situações, por exemplo, contando parábolas, fazendo sermões etc. (7,1). Deste modo, afirma-se que Jesus é a Palavra de Deus em tudo que Ele é e faz, e não apenas no que diz. Contudo, o ensinamento de Jesus provoca reações; não é possível ouvi-Lo sem dar uma resposta existencial seja ela de acolhimento ou de rejeição.
De modo impressionante São Lucas joga com os paradoxos: “Quando acabou de falar, disse a Simão”. Quando Jesus para de falar, escuta-se a sua voz: “Avança para as águas mais profundas e lançai vossas redes para a pesca”. Impossível ouvir a Palavra de Deus, o ensinamento de Jesus, se não nos sentirmos impelidos por ela, convocados, provocados a reagir diante do seu apelo, em outras palavras, sermos-lhe obedientes. O ensinamento de Jesus não pode ser reduzido a discursos teóricos que atraem multidões, mas não as comprometem, não lhes propõem o discipulado. Obedecer a Palavra é a prova mais convincente de que a escutamos.
Por outro lado, a obediência à Palavra não se dá de modo mecânico, automático, impulsivo ou puramente entusiasta. Exige de nós reconhecimento sincero, honesto da nossa realidade, do que somos e estamos ou não fazendo. Só assim, seremos capazes de dar o passo da fé, da confiança que comprova a nossa obediência. Simão Pedro fez esse processo: “Mestre, trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”. Nessas palavras encontra-se a justificativa para não obedecer ao mandato do Senhor, uma vez que sendo pescadores experientes (trabalhamos), conhecedores da técnica mais eficiente (pescar à noite inteira, momento mais favorável) e dispor de recursos materiais necessários (a barca e redes), não tiveram uma pesca exitosa, portanto, não haveria a essas alturas nenhuma razão para insistir diante do fracasso.
Porém, algo novo se apresentou diante deles: um mestre que ensina com autoridade (4,22). A essas alturas a fama de Jesus já se espalhara pela redondeza (4,37). Porém, sem obediência à sua palavra, o risco é permanecer na superficialidade, na esterilidade; encantar-se sem converter-se é afogar-se nas águas rasas da existência.
Simão Pedro dá o passo necessário para tornar-se discípulo Daquele a quem acabava de chamar de mestre, pois contra toda lógica humana e objetiva que muitas vezes aprisiona na superfície, a adesão de fé lança na dimensão mais profunda do mar da vida, que é a descoberta do grande significado de viver: o encontro com o Divino Pescador de homens que nos faz também pescadores para a vida (grego: anthropous ese zogron, estarás pescando pessoas vivas).
O ensinamento de Jesus alcança o seu auge diante da reação de Simão que de pescador experiente, surpreendido pelo inesperado, converte-se em discípulo humilde e obediente. Ao reconhecer-se na sua condição de pecador, a ponto de considerar-se indigno de estar na proximidade do Senhor, o pescador Simão Pedro faz o grande mergulho na misericórdia do Senhor que não o quer longe por causa dos seus pecados, mas bem próximo de Si para fazer dele sua testemunha e enviado.
Diante de insucessos e tentativas frustradas na missão, faz-se necessário abandonar as nossas seguranças de superfície para ancorar a nossa existência mergulhando nas águas mais profundas do conhecimento da Palavra de Deus, sendo-lhe humildemente obedientes.

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana