Festa da Dedicação da Basílica do Latrão: Jo 2,13-22 – O verdadeiro e indestrutível Templo

Hoje dia nove de novembro, em toda a Igreja Católica de rito latino, se celebra a festa da Dedicação da Basílica do Latrão (Catedral de Roma). Por ser considerada a mãe de todas as igrejas da cidade de Roma e do mundo, esta festa de sua dedicação tem alcance universal e, portanto, mesmo sendo domingo, ela tem a precedência. Celebrar o aniversário da dedicação de uma igreja não é apenas recordar o momento de sua inauguração; não se trata simplesmente de um prédio qualquer aberto ao público para a sua utilização. A experiência humana tem comprovado que a maneira mais profunda e totalizante de comunicar o sentido de uma realidade transcendente é através da linguagem simbólica, por isso a dedicação-consagração de uma igreja nos recorda, antes de tudo, o lugar da reunião da verdadeira Igreja que é Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo (cf. LG 17).
A visão do profeta Ezequiel (primeira leitura) descreve simbolicamente o Templo como lugar da abundância de vida representada na água que jorra generosamente e que por onde passa fecunda a terra que, por sua vez, produz muitas árvores frutíferas para alimento e saúde. Muito provavelmente o profeta esteja fazendo uma alusão ao paraíso (cf. Gn 2,10-14) onde havia quatro rios agora transformados em quatro etapas partindo da Cidade Santa e alcançando a totalidade da terra. Em suma, a imagem evoca o paraíso primevo, mas também aponta para o paraíso futuro em que não haverá mais morte, só a vida em plenitude. Assim, a Igreja na terra é apresentada como casa de Deus e porta do céu, sua missão é congregar os filhos e filhas de Deus dispersos para que formem um só povo destinado à salvação. 
Na segunda leitura, São Paulo utiliza uma imagem muito eloquente para falar da comunidade: “Vós sois lavoura de Deus, construção de Deus.” Metáforas que indicam a origem da Igreja, isto é, Deus é o seu fundador e cuidador (agricultor, construtor). Pensar a Igreja como um mero fato sócio-histórico é esvaziá-la de sua realidade mais radical. Portanto, ela tem um alicerce: Jesus Cristo, a pedra angular sobre a qual tudo se edifica. A Igreja é Santa porque é santuário de Deus e morada do Espírito Santo. A mentalidade horizontal e reducionista hodierna de pensar a Igreja como uma reunião de pessoas que rezam, leem a Bíblia e realizam ações caritativas e assistenciais pode ser uma ameaça, pois transferem o fundamento da Igreja para uma simples atuação humana. Jesus adverte: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5), portanto, somos membros de um único corpo, isto é, o de Cristo, somos esse Santuário. Não nos alicerçamos em nós mesmos, mas estamos enraizados Nele.
O relato do evangelho de hoje é geralmente denominado: Purificação do Templo; fato atestado não só pelo IV Evangelho, mas também pelos sinóticos (cf. Mt 21,12-13; Mc 11,15-17; Lc 19,45-46), cada um com a sua respectiva perspectiva teológica. Vale salientar que São João preferiu inseri-lo já no início do seu evangelho, enquanto os demais o colocam nos episódios finais da vida de Jesus ao chegar em Jerusalém.
Contudo, em todas as narrações evangélicas o acontecimento está colocado na proximidade da Páscoa; destarte, esses fatos estão intimamente relacionados. Poderíamos dizer que a purificação do Templo serve de introdução ao que irá acontecer na páscoa de Jesus, pois Ele mesmo declara: “Destruí este Templo, e em três dias o levantarei”. Em grego usa-se o mesmo termo (egeiro) com o significado seja de erguer, levantar como de ressuscitar. O próprio evangelista ressalta esse aspecto semântico (“Quando Jesus ressuscitou”: foi levantado). 
O gesto aparentemente violento de Jesus: “Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo…”, na verdade, é uma ação profética (modalidade da profecia veterotestamentária), um modo de comunicar com veemência uma denúncia e, ao mesmo tempo, um convite à conversão. Não podemos qualificar essa ação de Jesus como violência que, por sua vez, tem sempre a finalidade de destruir; Jesus contrapõe a sua ação à verdadeira violência que será a sua morte: “Destruí este Templo”. A razão principal da ação de Jesus é recuperar o significado e finalidade do Templo: “Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio”.  Como Messias e rei de Israel, já declarado no início do evangelho (1,49), a ação de Jesus se mostra muito coerente com as expectativas judaicas, uma vez que se esperava que o Messias-rei purificasse e reconstruísse o Templo (cf. Sl 18,21-22;36; Mc 14,57-61).  
Assim como os antigos profetas levantavam questionamentos diante de seus gestos (Is 20; Jr 27), Jesus é interrogado: “Que sinal mostras para agir assim?”. Na ocasião Jesus tinha acabado de realizar o seu primeiro sinal (Bodas de Caná Jo 2,1-11), inaugurando assim uma série de 7 sinais relatados no IV Evangelho que culminará na ressurreição de Lázaro (Jo 11,1s). Se nas Bodas de Caná (1º sinal) Jesus anuncia a sua missão, isto é, estabelecer a nova e definitiva aliança (alegoria do matrimônio entre Deus e o povo), na ressurreição de Lázaro (7º sinal), Ele revela as consequências dessa aliança definitiva: a fé Nele que garante a ressurreição e a vida. 
Se o Templo de Jerusalém construído e destruído ao longo da história do povo de Deus carregava, ainda que de modo provisório, prefigurativo, um valor de lugar privilegiado do encontro com Deus, agora este lugar é o novo e definitivo Templo, o Corpo de Cristo morto e ressuscitado, do qual somos membros. 
O zelo por esse templo deve ser o compromisso de todos os seus membros, na vigilância para que não se desvie da sua finalidade. Portanto, como dizia Orígenes: “E desde então Jesus, o ungido de Deus, começa sempre por reformar os abusos e purificar do pecado: tanto quando visita a Sua Igreja, como quando visita a alma cristã” (Homilias sobre São João, 1), faz-se necessário acolher essa presença do Senhor ainda que com o chicote na mão para denunciar a nossa infidelidade e nos chamar a conversão, restaurando-nos como membros vivos do seu Corpo, animados pelo Seu Espírito.
 
 
Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana