Pe Modino – Manaus
Em tempo de crise somos desafiados a superar o presente para construir um futuro melhor, também para a Igreja. É tempo de poder descobrir que “não podemos mais trilhar o caminho do consumismo, do prazer, da destruição, do isolamento”, mas também de ser “uma Igreja mais comunidade, mais comunhão, uma Igreja em saída”.
Desde essa perspectiva, Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, vivencia o momento atual que o mundo está vivendo, oferecendo orientações, diante de um vírus que nos coloca frente ao mistério da morte. É tempo em que “somos provocados à solidariedade, à caridade, à comunhão, ao sentido de ser Igreja”, em que como Igreja tentamos ser presencia de forma diferente e celebrar a fé de outro modo, “é tempo de comunhão, não de separação; tempo de irmandade, não de dispersão, tempo de cuidado, de samaritanidade”, insiste o arcebispo.
A Igreja de Manaus, como acontece na prática totalidade do Brasil respeita as orientações feitas pela Organização Mundial da Saúde, mas também se preocupa, segundo Dom Leonardo, porque “infelizmente temos autoridades que subestimam a gravidade do momento”.
Diante das graves consequências que se esperam na economia, para o arcebispo de Manaus, “o incrível é que desejam colocar a “conta” sobre os ombros dos trabalhadores”, olhando “para o mercado e não as pessoas”. Mas acima do prejuízo econômico, que também deve atingir à própria Igreja, “talvez, o coronavírus esteja acordando em nós o que existe de mais humano e divino: cuidado com o Tu”. Por isso, Dom Leonardo insiste em que “não podemos abandonar as pessoas que ninguém quer”.
Como o senhor está vivenciando pessoalmente a atual situação que a humanidade está passando em relação ao Covid-19?
Buscando informações e oferecendo orientações pastorais e de saúde para as famílias, as comunidades, à sociedade. Com os presbíteros da Arquidiocese, procuramos orientar para que as pessoas se sintam unidas e se cuidem uns dos outros. Organizamos com as diversas paróquias e áreas missionárias a transmissão das celebrações para nos sentirmos em comunhão na fé. A pandemia acontece no Brasil no tempo da quaresma o que me leva a meditar o mistério da vida e da morte. Como somos frágeis!
Um vírus que não vemos é capaz de nos levar à morte. O mistério da morte que se apresenta sob o véu de uma pandemia e nos desperta para o sentido da nossa existência: vida nova, ressurreição. Nesse tempo de fragilidade, de enclausuramento, me é oferecido um tempo para leitura e oração, mas também um tempo para coordenar ações que possam ajudar aos irmãos mais necessitados: os que vivem da informalidade, os que vivem nas nossas ruas. Quem olhará para eles? Mas também perceber que o nosso modo de vida atual esteja chegando ao fim: teremos que viver de modo mais simples, abrir espaço para a natureza ter na sua espacialidade, cuidar da casa comum.
O que está representando na vivência da fé, para a arquidiocese de Manaus e para a Igreja do Brasil, essa pandemia?
Somos provocados à solidariedade, à caridade, à comunhão, ao sentido de ser Igreja. Somos despertados para a dignidade e cuidado com os idosos. Somos obrigados a abrir os nossos olhos e perceber a presença dos pobres e seu direito à saúde. Tudo está a nos provocar e despertar para uma realidade quase esquecida, que somos pessoa, ser humano, não número, negócio, cifrões. Mas, também, somos abrigados na graça da presença de Deus. Na pandemia Deus também está presente e deseja mostrar o seu rosto.
A fragilidade faz emergir o mistério suave e quase imperceptível que nos mantém vivos e concede vida a tudo. Vivos com os seres vivos no Vivente. Como cristãos despertamos para a preciosidade da vida; apreendermos a admirar a presença de tantas pessoas, através das pastorais e outras formas, que na gratuidade servem e cuidam, nas nossas comunidades, nas ruas de nossa cidade. Estamos, a cada dia, vendo profissionais da saúde dando sua vida pela vida de pessoas não conhecidas. Isso é admirável, edificante. Talvez, a pandemia esteja nos oferecendo olhos mais contemplativo-ativos, isto é, mais reais, sem lentes escuras.
O Sínodo para a Amazônia faz o chamado para a Igreja ser presença na vida do povo. Diante do isolamento social que a Organização Mundial da Saúde está indicando, como ser essa presença na vida das pessoas?
Como seria bom se pudéssemos ir até os irmãos e as irmãs, às famílias e às comunidades. É necessário um esforço para permanecer em casa e buscar outros meios de ser presença. Hoje temos, graças a Deus, tantos meios de nos sentirmos próximos, de nos percebermos família, de sermos comunidade, para além da geografia. Estamos encontrando outros espaços. Os momentos de oração chamados pelo Papa Francisco nos dão essa percepção. Suas palavras têm levado muitos irmãos e irmãs a perceberem que somos Igreja.
Fiquei surpreso com número das pessoas que acompanharam no domingo, dia 22, a celebração da Eucaristia celebrada na catedral vazia, mas transmitida pelo rádio e internet às 7:30hs da manhã. Os padres, religiosos e religiosas, tem realizado uma verdadeira missão para estarem através dos meios de comunicação junto ao povo. Estamos juntos; é tempo de comunhão, não de separação; tempo de irmandade, não de dispersão, tempo de cuidado, de samaritanidade. Pelas notícias que chegam, as famílias estão rezando juntas, lendo a Palavra de Deus juntos. E nós como pastores ajudarmos as pessoas a acreditarem que o isolamento temporário ajuda na não disseminação do vírus. Estamos oferecendo a nossa contribuição para que tenhamos nossos idosos e pessoas mais frágeis no meio de nós por mais tempo.
As autoridades brasileiras estão tomando decisões contraditórias em referência ao combate do coronavírus. Como ajudar a entender, vendo a situação de outros países, que o momento é realmente grave, que ninguém pode fazer de conta que não está acontecendo nada?
Nós, na Arquidiocese de Manaus, seguimos as recomendações feitas pela Organização Mundial da Saúde. Já havíamos decido cancelar todas as celebrações públicas dos sacramentos por 30 dias no dia 19 de março. Também foram suspensas as cerimônias da Semana Santa que em Manaus tem a participação de grande número de fiéis. Ao apresentarmos as orientações pastorais mostramos a gravidade do momento que vivemos. Vieram, em seguida, os decretos da Prefeitura de Manaus e do Governo do Estado do Amazonas. Governadores e prefeitos, cientes da pandemia, orientaram a sociedade para a permanência em casa.
Infelizmente temos autoridades que subestimam a gravidade do momento. Tenho a impressão de que os pobres, os cidadãos fragilizados, não contam. Sentem-se tão seguras que desafiam a inteligência humana e o bom senso. A ciência e o bom senso convidam ao cuidado com a vida. Existe pouco a fazer quando falta a percepção da realidade em relação à gravidade da pandemia e o jogo econômico é maior. A economia existe para o homem ou é o homem que deve servir à economia. É questão de horizonte que envolve a política. Continuaremos seguindo as recomendações do Santo Padre e da Organização Mundial da Saúde. O momento nos pede confiança, solidariedade, cuidado, fé.
Alguns empresários, também algumas pessoas, têm se manifestado publicamente sobre o prejuízo para a economia em caso dos trabalhadores e as pessoas continuar ficando em casa. Como dizer para eles, especialmente aqueles que se dizem católicos, que o cuidado com a vida está acima do cuidado com o capital?
O prejuízo será enorme, as consequências incalculáveis na economia. O incrível é que desejam colocar “conta” sobre os ombros dos trabalhadores. O próprio governo federal tentou isso com a MP 927. Outros países apresentaram outras soluções preservando os empregos endividando o Estado. Como na ocasião do “Teto dos Gastos” agora também não se olha para os pobres, para os trabalhadores, isto é, o Estado investindo para o bem das pessoas. Olham para o mercado e não as pessoas. Muitos empresários católicos têm percebido que a responsabilidade é de todos e que é dever do Estado preservar os empregos. Temos também a reação de homens de negócios que não se importam a vida dos outros, mas com os seus negócios. Talvez despertarão para o significado da vida se tiverem que enterrar um familiar atingido pelo vírus.
A Arquidiocese tem colaboradores e colaboradoras na cúria, nas paróquias, nas rádios. Nós sabemos o quanto custará. Com as celebrações canceladas não teremos o suficiente para saldar os compromissos. Mas a vida em primeiro lugar. Diante das ideologias nefastas é preciso sempre tentar movimentar a grandeza e a generosidade do ser humano, a sua criatividade e a capacidade de doação. Talvez, o coronavírus esteja acordando em nós o que existe de mais humano e divino: cuidado com o Tu. É o que nos ensinam vários pensadores, é o que nos ensina Jesus. Não devemos desistir o ser humano, por mais lucro que ele busque.
Em Manaus, assim como no Brasil todo, existem muitas pessoas em condições de vida muito precárias em relação com o trabalho, a moradia, a saúde… Essa é uma realidade que a Igreja do Brasil está refletindo na Campanha da Fraternidade de 2020, que faz um apelo ao cuidado com a vida. O que deveria ser feito como sociedade diante dessa realidade? Como a Igreja católica deve reagir a partir da reflexão que a Campanha da Fraternidade está propondo?
Na reunião do clero ao apresentar as orientações pastorais para esse tempo do vírus, vários padres logo lembraram da necessidade de irmos ao encontro desses nossos irmãos e irmãs. Foram apresentadas ao governo municipal e estadual ações em conjunto para que não fiquem desprotegidos. Nós continuaremos todo o serviço que vínhamos realizando. As Irmãs da Caridade abriram a Casa da Criança para que as mães que vivem na rua possam dar banho nas crianças. Um pequeno gesto que gestará outros.
Não podemos abandonar as pessoas que ninguém quer, no dizer de Madre Teresa de Calcutá. Também há necessidade de pressionar o Governo para que haja um renda mínima digna para esses irmãos e irmãs, para aqueles que vivem do trabalho informal, mas também as pessoas que em seu pequeno “negócio” geram renda suficiente para manter a família. É tempo do Estado cuidar daqueles que são a razão de ser do Estado. O Estado não existe sem pessoas.
O que a pandemia pode nos ensinar para o futuro? Que perspectivas é possível vislumbrar para o mundo é para a Igreja católica?
Como disse o Papa Francisco, a humanidade sairá melhor depois da pandemia. Espero que os cientistas nos ajudem a perceber que não podemos mais trilhar o caminho do consumismo, do prazer, da destruição, do isolamento. Espero que os economistas apresentem um outro modo de relação econômica onde o lucro não seja o primeiro objetivo e acumulo financeiro de alguns não seja o descarte os pobres. Talvez, até, possa surgir um novo modo de economia que reorganize as relações da nossa Casa Comum, para superar uma economia da Bolsa de Valores. Estados e Governos deverão dar-se as mãos na pesquisa e na busca de soluções. Talvez, o mundo será menos isolado, menos ideológico.
Estamos percebendo que todos necessitamos uns dos outros. Pertencemos a uma totalidade: humanidade, terra! Talvez, escutaremos com maior respeito as diferenças culturais e diferenças religiosas. A própria Igreja aprenderá ser mais samaritana, consoladora, caminhante, despojada. Uma Igreja que seja com os pobres. Uma Igreja onde os irmãos que tem mais posses tenham a alegria de repartir, de amar. Uma Igreja mais comunidade, mais comunhão, uma Igreja em saída. Certamente não teremos mais receio de apresentar o Evangelho como remédio e salvação para a nossa sociedade adoentada e capaz de transformar as estruturas injustas. As raízes que alimentam a humanidade não são o dinheiro, o lucro, mas o acolhimento, o perdão, o consolo, o cuidado, o amor livre e gratuito, a fé.