Festa da Sagrada Família: Mt 2,13-15.19-23 – Família: protetora da vida

Há exatamente um ano iniciávamos o Jubileu da Esperança, Ano Santo convocado pelo Papa Francisco para fazermos a experiência de Peregrinos de Esperança. O Papa Leão XIV, desde que iniciou o seu pontificado em pleno Ano Santo, tem nos ajudado a crescer ainda mais nessa experiência, sobretudo nos confirmando na fé, proclamando os verdadeiros valores humanos e cristãos, entre eles, a importância e sacralidade da família, “fundada pela união estável entre homem e mulher” (Papa Leão XIV, 16.05.2025). Portanto, o compromisso com a família, projeto de Deus para o ser humano, renova a nossa esperança para um mundo melhor.
A liturgia coloca essa festa dentro da Oitava do Natal justamente para impedir que o encanto do presépio seja romantizado. O Menino envolto em faixas é também o Deus que aceita depender de José e Maria para sobreviver. A pobreza, a instabilidade, a ameaça constante — tudo isso faz parte do “sim” de Deus à condição humana.
Depois que os Magos partiram”: a narrativa dos Magos termina em festa, luz e reconhecimento. Mas imediatamente surge a sombra: Herodes quer matar o menino. Isso mostra que, na História da Salvação, a manifestação de Deus nunca acontece de forma ingênua; ela provoca reação, conflito, discernimento. A luz incomoda quem vive das trevas.
Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito”: A fuga para o Egito é um verdadeiro prelúdio da missão de Jesus; a perseguição de Herodes não é um acidente narrativo, ela antecipa o destino do Justo perseguido, o Servo sofredor, que carrega sobre si a violência do mundo, o Messias rejeitado, cuja luz incomoda as trevas desde o primeiro instante. Deus vence, mas não sem a colaboração humana. José precisa levantar-se, pegar o menino e fugir, assim como a mãe de Moisés que precisou esconder, proteger, arriscar-se. A graça não dispensa a responsabilidade; ela a desperta.
A Sagrada Família, nesse sentido, não é apenas um modelo moral de virtudes domésticas, mas um verdadeiro ícone profético. Nela já se concentra o drama pascal: ameaça, exílio, confiança, obediência, cuidado mútuo. A cruz não é um acidente no caminho da glória; ela é o caminho. Cristo vence não apesar da fraqueza, mas através dela. Isso muda completamente a forma como entendemos poder, sucesso e missão. A serpente é esmagada não por um gesto de violência, mas por um ato de amor radical. A vitória não é um triunfo militar, mas uma fidelidade que não se deixa corromper. A fragilidade humana, assumida por Deus, torna-se o lugar onde a graça irrompe. Essa lógica é desconcertante porque desmonta nossas expectativas de controle e eficiência. Deus escolhe vencer onde nós escolheríamos recuar.
Herodes vai procurar o menino para matá-lo”: Isso ecoa em toda a narrativa bíblica — desde o Êxodo até a Ressurreição. Quando tudo parece perdido, quando a morte e a perseguição parecem dominar, Deus se revela como aquele que insiste na vida. A ligação entre Jesus e Moisés é central no evangelho de Mateus. Assim como Moisés foi o mediador da libertação do Egito, Jesus é apresentado como o novo e definitivo libertador. Mas a libertação que Ele traz é mais profunda: não apenas política, mas existencial, espiritual, eterna. O paralelo entre Jesus e Moisés não é apenas literário; é teológico, histórico-salvífico e programático. Mateus usa a figura de Moisés para mostrar que Jesus é a continuidade — e a plenitude — da ação libertadora de Deus na história. A comparação com Moisés é muito significativa (ambos nascem sob decretos de morte; ambos são preservados por intervenção divina; ambos têm sua vida salva graças à coragem de pessoas simples – 0a mãe de Moisés, José; ambos são libertadores: Moisés do Egito; Jesus do pecado e da morte). Herodes (como o faraó) representa todo sistema que teme perder o controle. Diante da luz que nasce, ele reage com violência. Isso não é apenas um episódio antigo; é um espelho da realidade humana. Sempre que a vida nova desponta — um projeto honesto, uma família reconstruída, um jovem que decide mudar de caminho — surgem resistências, internas e externas. O Evangelho nos lembra: a presença de Deus não elimina o conflito; ela o revela.
José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito”: A fuga para o Egito — terra que antes foi lugar de escravidão — agora se torna refúgio. Isso mostra que Deus pode transformar até os espaços de dor em espaços de proteção. O Egito, que antes foi símbolo de escravidão, agora se torna abrigo. Deus tem essa capacidade surpreendente de transformar lugares de dor em lugares de proteção. Quantas vezes, na nossa vida, aquilo que parecia derrota se torna caminho de salvação.
Nada é definitivo quando Deus está conduzindo a história. Deus age, mas conta com quem está disposto a colaborar; José não discute, não adia, não calcula. Ele se levanta, toma o menino e sua mãe, e parte. A mãe de Moisés também agiu assim: protegeu, escondeu, confiou. A salvação acontece quando a graça encontra disponibilidade. Deus poderia agir sozinho, mas escolhe agir conosco. José poderia ter pedido sinais extraordinários. Poderia ter exigido proteção visível; mas não, ele escuta a Palavra, levanta-se no meio da noite e parte. A obediência transforma a fuga em peregrinação. A diferença entre covardia e fidelidade está na motivação: quem foge por medo, abandona a missão; quem foge por obediência, protege a vida e mantém viva a promessa de Deus. A fuga para o Egito não é desistência, é coragem silenciosa, é discernimento, é compromisso com a vida, é amor.
Quando Herodes morreu, o anjo do Senhor apareceu em sonho”: O combate entre vida e morte continua hoje. O Evangelho não é apenas memória; é diagnóstico. Ainda hoje, forças de morte tentam sufocar a vida (violência, injustiça, corrupção, indiferença, medo, desesperança). Mas Deus continua despertando “Josés” e “mães de Moisés”: pessoas que protegem, que acolhem, que defendem a vida, que se levantam quando o anjo fala ao coração.
Celebrar hoje a Sagrada Família é muito mais do que recordar uma cena bonita de Jesus, Maria e José reunidos no presépio. É contemplar um modo de Deus agir que desconcerta nossas expectativas e ilumina nossas próprias famílias, com suas lutas, fragilidades e esperanças. A Sagrada Família nos ensina que a fidelidade à missão não se mede pela ausência de dificuldades, mas pela capacidade de escutar a Palavra e levantar-se, mesmo de noite, mesmo cansados, mesmo sem entender tudo. Deus não abandona os que obedecem. Ele guia, sustenta, fortalece. E quando chega a hora, Ele mesmo diz: “Volta… pois aqueles que procuravam matar o menino já estão mortos”. Aquele que envia é o mesmo que garante o caminho. Que esta festa reacenda em nós a certeza de que o destino é seguro, mesmo quando a estrada é longa. Que nossas famílias aprendam com José a discernir, com Maria a confiar e com Jesus a permanecer no centro de tudo. E que, como eles, sejamos peregrinos de esperança, caminhando juntos rumo à vida plena que Deus sonha para nós.
 
 
Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana