Dia do Natal do Senhor: Jo 1,1-18 – A Palavra para se encarnar, criou

Celebramos hoje o mistério fundamental da nossa fé: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. O Prólogo de São João, uma das páginas mais densas e sublimes de toda a Escritura, não é apenas uma introdução ao IV Evangelho, mas uma verdadeira chave de leitura de toda a Bíblia. Quando São João afirma: “No princípio era a Palavra… E a Palavra era Deus”, quis nos recordar que a história da salvação não começou em Belém, mas tem as suas raízes na eternidade de Deus. O mesmo Verbo que criou todas as coisas é o mesmo que agora vem morar no meio da humanidade. O Verbo já estava presente desde sempre, revelando que a criação e a encarnação fazem parte de um único projeto divino. A Criação tem como fundamento a Encarnação do Verbo (“Tudo foi feito por ele e para ele”: Cl 1,16), não é só o começo da história, mas o ato contínuo que sustenta tudo. Sem a Encarnação, a Criação perderia a sua razão e finalidade de ser, arriscaria cair no vazio ou ser destinada à caducidade.
São João retoma a mesma expressão do início do Livro do Gênesis (hebraico: Bereshit, no princípio) que, por sua vez, não indica aspecto cronológico. O intuito do evangelista é evidenciar a unidade dos Testamentos; demonstrar que não há entres eles contradição nem muito menos uma superação desqualificativa, mas que estão intrinsecamente relacionados. O Novo não existiria sem o Antigo, e o Antigo ficaria uma incógnita sem a iluminação do Novo.
O Prólogo é uma teologia da criação e da salvação: tudo começa no Verbo e tudo retorna ao Verbo: “Sem ela nada se fez”. A Palavra criadora de Deus é apresentada como força estruturante: sem ela, tudo volta ao caos primordial. É também uma espiritualidade da presença: Deus não está distante, mas próximo, íntimo, solidário. No Natal, este texto nos recorda que a Encarnação é o coração da fé cristã. O Natal não é apenas memória de um nascimento longe no tempo e no espaço, mas celebração da presença viva de Deus que ilumina e salva.
Nela (na Palavra) estava a vida, e a vida era a luz dos homens”, é a luz que nenhuma treva pode apagar. O primeiro ato criador de Deus é a luz (Gn 1,2-3). Ela inaugura a ordem e vence o caos. A luz simboliza a glória de Deus que acompanha o povo, como na coluna de fogo que guiava Israel no deserto. Diante dessa luz, somos convidados a acolhê-la, deixando que ela ilumine todas as instâncias e meandros da nossa vida. A “luz de verdade” que ilumina todo ser humano é a manifestação dessa Palavra — sem ela, o ser humano permanece na confusão e não alcança plenitude. Mais adiante, o evangelho reforça: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em plenitude” (Jo 10,10), mostrando que a vida verdadeira não é apenas biológica, mas existencial e espiritual, ligada ao encontro com essa luz. A plenitude da vida só se alcança quando o ser humano se abre à luz da verdade, saindo do caos para a comunhão.
E a Palavra se fez carne”:  o Antigo Testamento preparou o auge da história que se realiza no Novo Testamento, justamente nesse momento da Encarnação, pois revela o seu cumprimento. Deus não apenas fala, mas se faz presente, visível, tangível. Aqui está o ápice da revelação. Deus não apenas cria, mas entra na Criação, armando sua tenda no meio da humanidade. É uma linguagem que lembra o Antigo Testamento quando Deus habitava no meio do povo no tabernáculo. A Encarnação não é um detalhe histórico, mas a revelação máxima do amor divino. Deus quis habitar não como hóspede, mas como alguém que assume a nossa condição. Ele arma a sua tenda entre nós e em nós (grego: ev ‘emin), pois assumiu a nossa fragilidade, a fim de que participássemos da sua vida divina: “Deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus”.
…E habitou entre nós” (grego: eskenosen, armou a tenda). A relação intrínseca entre o Antigo e o Novo Testamentos já mencionada se evidencia com o tema da tenda, que se torna um verdadeiro fio condutor, realmente fascinante porque conecta três momentos centrais da fé cristã: a Encarnação, a Paixão e a Ressurreição. Jesus fala do templo do seu corpo (Jo 2,19); a tenda que Ele assumiu é o próprio corpo do ser humano, que mesmo destruído, será reconstruído na Ressurreição. Aqui, a “tenda” ganha dimensão pascal. Por sua vez, São Paulo retoma a metáfora da tenda (tenda terrestre: 2Cor 5,1) para dizer que a vida humana é transitória, como uma tenda que será desfeita. Mas essa fragilidade se abre à promessa de uma morada eterna, construída por Deus. A imagem da tenda mostra que a nossa existência é provisória, mas orientada para a eternidade, e que o Corpo de Cristo é a tenda definitiva, que une céu e terra.
E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai”: segundo o evangelho de São João, a glória de Deus se manifesta progressivamente: da Encarnação aos sinais até a Cruz e Ressurreição. As Bodas de Caná (Jo 2,11), primeiro sinal dos 7 sinais de São João, é princípio (arché) da obra de Cristo. A glória se manifesta e os discípulos creem Nele. É um prelúdio da “hora” definitiva, quando a glória se revelará na cruz e ressurreição; o fundamento da fé não é apenas a memória de fatos, mas a manifestação da glória que desperta a fé: “para que vejamos e creiamos”.
O Natal não é apenas memória de um nascimento, mas anúncio da glória que se consumará na cruz e na ressurreição. Celebrar o Natal é renovar a certeza de que Deus se fez próximo, habitou entre nós e permanece conosco assumindo todas as consequências de tal escolha. Natal e Páscoa são inseparáveis: o Verbo que “armou sua tenda entre nós” (Jo 1,14) não veio apenas habitar, isto é, ocupar um lugar, mas revelar a glória de Deus, estabelecer relacionamentos para nos fazer conhecer e provar do seu amor manifestado na entrega suprema na cruz, simbolizado já profeticamente quando foi depositado na manjedoura envolto em faixas, como o será mais tarde no sepulcro. O Natal já aponta para a Páscoa, pois a Encarnação só se compreende plenamente na entrega e vitória sobre a morte.
Mais do que ser testemunha da Luz verdadeira como foi São João Batista, devemos fazer resplandecer essa Luz, pois dela recebemos a graça e a verdade.
 
 
Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana